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TEXTO Nº 2: MARIA CRISTINA RIZZOLI


RIZZOLI, Maria Cristina. Leitura com letras e sem letras na educação infantil do norte da Itália. IN: FARIA, Ana Lúcia Goulart e MELLO, Suely Amaral (orgs.). Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas: Autores Associados, 2005, p.5-22.

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DEBATE UM

LEITURA COM LETRAS E SEM LETRAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL DO NORTE DA ITÁLIA

Maria Cristina Rizzoli (É coordenadora pedagógica na rede pública de educação infantil da cidade de Bolonha, no norte da Itália. É responsável, entre outros, pelo programa de leitura nas creches da Secretaria de Educação que envolve várias dimen¬sões artísticas. Nesta conferência, ela fala da experiên¬cia que tem com livros e crianças pequenininhas. A pre-sença do livro dentro das escolas da infância, na forma¬ção das professoras e na mão das crianças é muito forte na educação infantil italiana).

Nos últimos anos, na educação infantil italiana que chamamos de primeira e segunda infância, ou seja, na educação das crianças de O a 6 anos, temos nos em¬penhado bastante em relação à leitura e aos livros [nota: 1].
Por que escolhemos o livro como objeto para a criança nessa faixa etária?
Na sociedade atual, as crianças passam muitas horas na frente da televisão. Mesmo na pré-escola, a mídia está

Nota 1 – Página 05. Esse empenho em relação à leitura, na verdade, não acon¬tece em toda a Itália, mas no norte, em algumas regiões do centro-norte onde, ao contrário do Brasil, se concentra a região mais desenvolvida do país.

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muito presente. Na pré-escola italiana, já existe um com¬putador onde as crianças podem criar o próprio texto. Não sei se isso é certo ou errado, mas o fato é que as crianças têm, muito cedo na vida, contato com um computador. Os computadores, assim como os videogames, não po¬dem exaurir todas as possibilidades que uma criança tem, especialmente porque eles não criam relacionamentos.
Nós, na prefeitura de Bolonha, acreditamos que o fato mais importante que acontece, quando se conta uma história, é o relacionamento que se cria.
Acreditamos que contar histórias é uma característica de todo ser humano. Contar histórias é uma arte muito antiga e ela responde à necessidade humana mais profun¬da de manter esse relacionamento de empatia entre os indivíduos, tornando possível experimentar o que o outro experimenta e, assim, dar forma à própria experiência.
Mesmo num passado remoto, quando as palavras ainda não existiam, as histórias eram contadas por meio dos olhares, da mímica, dos gestos, dos sons. Com eles se contava o medo, as surpresas, o desejo, o desconforto, a coragem, a conquista. Portanto, esse impulso que temos de dar forma de história às nossas experiências vividas já significava antigamente e significa, ainda hoje, a necessi¬dade de ordenar, dar significado às coisas que acontecem e também de conservar na memória essas experiências e criar um sentido de pertencimento ao grupo.
Portanto, os sons, as palavras, os gestos e os olha¬res são todos instrumentos utilizados para criar um lugar de encontro, aquela "terra do meio", que é feita de conexões, de relacionamentos entre quem conta e quem ouve a história. Situações em que o que importa é a presença e a vontade de uma comunicação autêntica e

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Acessível, em grau capaz de suscitar um sentimento comum: aquela maneira específica, aquela forma de conhecimento que torna possível provar que o que um sente também o outro pode sentir, e saber que a sua vivência é parecida com a vivência do outro.
Essa relação é estabelecida entre a capacidade de contar e a capacidade de ouvir. Essa comunicação destrói qualquer tipo de barreira e supera todas as contradições que podemos ter, porque nós, nesse momento, nos sentimos unidos, nos sentimos diferenciados e podemos conhecer a experiência humana nesse relacionamento.
Quer se trate de histórias engraçadas, divertidas, leves, insensatas, poéticas ou intensas, o importante é o sentimento de pertencer, de estar junto.
Essa volta ao prazer de ouvir e de contar uma histó¬ria nasce do desejo de encontrar aquele lugar antigo, onde o espaço físico pode tocar você. É um lugar de encontro profundo e secreto, onde esses sentimentos de prazer tocam os pontos mais íntimos do nosso coração.
A nossa fome por histórias pode ser satisfeita pela mídia, por meio da televisão, do computador, enfim, por todos esses meios modernos.
Mas, através deles, não sentimos o mesmo que ex¬perimentamos quando uma história é contada oralmente: a presença, o comportamento que envolve o estar jun¬to com uma outra pessoa e exercitar a capacidade de ouvir.
Ouvir histórias tem uma importância muito grande para a criança: faz com que ela se sinta importante, sinta que alguma coisa está sendo feita especialmente para ela. As histórias também têm um valor terapêutico e, por isso, são narradas para as crianças como forma de terapia. Um edu-cador italiano relata sua experiência de contar histórias em

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institutos de reeducação para menores com problemas. De acordo com sua experiência, as histórias curam. Elas não curam a parte física doente das crianças, mas resgatam o que as crianças têm de bom e fazem com que elas possam retomar a vida, alimentar-se de idéias e crescer. Esse educador conta emocionado o relato de um jovem que, após ter ouvido uma história, o procurou para dizer que era a primeira vez que alguém lhe contava uma história.
Esse aspecto do contar e ouvir histórias entra no âmbi¬to pedagógico. Ninguém pode negar que esse valor catártico faz o sujeito que ouve histórias liberar as angústias que guarda no subconsciente. A criança, ainda mais facilmen¬te, parece liberar essas angústias com as histórias que lhe são contadas. A idade infantil é muito conturbada, porque a criança tem que fazer grandes conquistas e, para isso, muitos esforços lhe são exigidos nos primeiros anos de vida. Ela tem que aprender a ficar em posição ereta, aprender a andar, ela tem que controlar os esfíncteres, tem que ter autonomia na vida cotidiana, tem que aprender a comer sozinha, a se vestir, a se despir, enfim, tem que aprender a fazer todos esse atos que são, para ela, verdadeiras con¬quistas que requerem muitos esforços repetitivos. Nesse momento, o fato de ela poder ser um herói, o fato de tor¬nar-se um herói ou um animal feroz que enfrenta os peri¬gos e obstáculos constitui uma experiência positiva. Esse esforço desse nosso pequeno herói - que tem lugar quan¬do a criança pode viver um personagem de uma história que é contada - se traduz como uma boa sensação. Nesse momento e nesse papel, ela se sente muito bem. Tornar-se um herói ou um animal permite a ela vivenciar as expe¬riências que o herói está vivenciando, e todas as conquis¬tas que ele faz se tornam parte da própria vida da criança.

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As histórias devem ser contadas para que as crian¬ças perguntem por quê. Elas estão sempre querendo saber o porquê das coisas, o que é uma curiosidade típica de toda a criança. Muitas vezes, o adulto dá explica¬ções racionais, pensadas e pouco imaginadas. Essas são respostas muito calibradas, muito precisas e a criança não está realmente querendo esse tipo de resposta. Uma história que é contada entra muito mais no universo da criança e dará respostas muito mais satisfat6rias para ela do que uma resposta racional de um adulto.
Segundo Nabokov, a narrativa representa um pon¬to delicado de encontro entre a imaginação e o conhe¬cimento. Ela pode, assim, representar um terreno fértil onde se pode fazer brotar a imaginação e abrir cami¬nhos criativos, enquanto situações mais rígidas e mais definidas podem inibir o desenvolvimento dessa criatividade e dessa imaginação da criança.
As histórias são feitas em grande parte de imagens e essas imagens atingem a parte mais profunda do nos¬so ser de maneira veloz e direta. Se, anos mais tarde, essas imagens forem novamente propostas por meio de novas narrativas, descobriremos que as imagens iniciais da narrativa entraram no nosso ser e não permaneceram aí somente na idade infantil, mas se encontram presentes.
As histórias realmente bonitas sempre ensinam al¬guma coisa e nos fazem sentir melhor. Também fazem crescer dentro de nós um sentido moral e nos dão um sentimento de empatia, de satisfação. Por isso, as histórias fazem surgir o alfabeto dos sentimentos, o alfa¬beto das emoções que nós vamos reconstruir, aceitar e adotar como comportamentos conscientes.
Além disso, quando ouve uma história, a criança

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desenvolve a capacidade de ouvir. Essa capacidade, atual¬mente, tem muitas vezes sua importância desconside¬rada. No entanto, é fator essencial de qualquer apren¬dizagem. Na verdade, mais que desenvolver na criança a capacidade de ouvir, a história contada ensina uma maneira de ouvir que fala do significado da vida.
A história contada define, ainda, uma seqüência de idéias e também reconhece sinais verbais que o narrador trans¬mite. Ao aproveitar esses sinais, a história contada possi¬bilita que a criança aumente o seu tempo de atenção. Des¬sa forma, ela consegue concentrar-se muito mais ouvindo uma história do que por meio de outras atividades.
Ouvir histórias desenvolve, também, uma capacida¬de de grande imaginação. Perguntado sobre qual seria a melhor maneira de cultivar nas crianças o interesse pela ciência. Einstein sugeriu que se contassem muitos e muitos contos de fadas para as crianças. Segundo ele, somente quando a criança tem uma grande dose de cu¬riosidade é que ela vai se sentir interessada a enfrentar situações específicas e seus desdobramentos. Se a criança desenvolver a imaginação, se ela tiver a curiosidade de¬senvolvida, ela poderá responder às várias situações que surgirão durante a vida e solucionar problemas futuros.
A criação de um sentido de comunidade, de um gosto por estar junto com outras pessoas, é muito importante no momento em que se conta uma história. De fato, o que nós lembramos, depois de muitos anos, não é a história específica que nos foi contada, mas aquele sen¬timento de estar próximo do outro, o sentimento de autenticidade, o sentimento de partilhar alguma coisa com a pessoa naquele momento em que a história foi contada. Essa comunicação - essa consciência da co-

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municação - é muito importante porque ela é deposi¬tada dentro do nosso ser, e poderá ser retomada em qualquer momento da nossa comunicação futura.
A ligação com a leitura é igualmente muito impor¬tante, pois por meio da prática de ouvir histórias bem contadas - histórias que são bem escolhidas para as crianças - a criança começa a sentir a leitura como algo familiar. Aos poucos, a linguagem, o ritmo em que a história é apresentada, os sons que são transmitidos, tudo isso entra no universo da criança como beleza e como experiência agradável de sonoridade.
Contar e ouvir uma história é, também, um modo de interpretar aquilo que acontece conosco, de encontrar um significado para aquilo que nós fazemos e de dar sentido não apenas a um evento isolado, mas a uma série deles - a várias categorias de eventos. É, por isso, um princípio de estruturação dos processos e das experiências de vida.
De acordo com o pensamento de Bruner, aprender é conseguir entender, entender é construir significados. A narração favorece, estimula e facilita a construção dos significados. Quando ouve uma história sobre outras pes-soas por meio da linguagem simbólica - da metáfora -, a criança pode retomar a sua própria experiência: ela ouve a experiência do outro e reelabora a experiência vivida. Nesse processo, ela percebe um significado e dá uma forma, um sentido, um sentimento legítimo ao que experimenta.
A riqueza dos detalhes e das nuanças das histórias coloca a criança em contato com o universo do possí¬vel, onde ela pode fazer uma interpretação também de coisas que se contrapõem, que se contrastam. Assim, pode perceber que existem pontos de vista diferentes que se encontram, que se desencontram, que podem

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ser iguais ou diferentes. O importante é saber e conhecer os diversos pontos de vista e perceber que eles podem ser diferentes. Não é tão importante saber se algo é bom ou se é ruim, mas que a criança aprenda a respei¬tar e a se fazer respeitar. Para isso, é essencial que ela se faça contaminar dos significados das experiências dos outros e atribua sentido a sua própria experiência. Essa experiência assume várias facetas, o que faz com que a criança aprenda a aceitar dentro de si mesma a convi¬vência de sentimentos opostos - das ambivalências - no percurso do seu crescimento e da sua vida.
Os pedagogos e educadores de Bolonha assumiram a importância do livro para a criança, e essa atitude fez com que o município de Bolonha iniciasse um traba¬lho explorando as várias possibilidades que o livro ofe¬rece. Alguns princípios têm orientado esse trabalho. Em primeiro lugar, a compreensão de que o livro é um ins¬trumento de conhecimento, mas também é um veícu¬lo para fomentar o relacionamento.
Em segundo lugar, a percepção de que o livro é um objeto a ser explorado e que ajuda a criança a inventar e construir outras histórias. A história não é só narra¬da, mas pode, também, ser desenvolvida em laboratórios com a criação de cenários, de desenhos, de atuação, de construção de novos livros.
E, finalmente, a compreensão de que o livro também é uma ocasião para a criança viver aventuras emo¬cionantes que constituem a chave de acesso ao mun¬do da imaginação.
Portanto, os livros servem para ser tocados, olhados, lidos, folheados, levados para casa, trazidos para a es¬cola, e podem ser discutidos, criticados, construídos.

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O livro faz a criança estar na presença de outras pessoas. Mas ela pode igualmente estar sozinha com o livro. Ele pode aumentar o relacionamento entre as pessoas, favorecer os encontros, e pode, também, dar asas à imaginação.
A figura do adulto é extremamente importante nesse processo, porque ele propõe cenários para as histórias, faz as escolhas dos lugares onde contar as histórias, escolhe os temas. Ao mesmo tempo, é o adulto quem ampara a criança no momento em que ela escolhe um personagem para representar. Ela pode escolher ser uma imagem de um animal feroz e precisará enfrentar esse personagem. Se ela tem um adulto perto dela que vai confortá-la e ajudá-la, não está sozinha, não vai se assustar com a situação ou com a imagem que criou. Assim, a presença do adulto é muito importante nesse relacionamento com a criança porque vai ampará-la, vai dar segurança para saber que ela voltará ao papel normal dela de criança. O importante é oferecer um ambiente agradável para a criança, onde ela possa formar um significado para sua história - que não é o significado dado pelos adultos, é o sentimento que a criança vai levar consigo dessa história.
Portanto, a curiosidade tem que ser desenvolvida, mas igualmente importante é o desenvolvimento do prazer. A criança tem que sentir prazer em estar próxi¬ma ao adulto - em ter a sensação de proteção do adul¬to - para ter a liberdade de imaginar um papel, uma si¬tuação, uma sensação.
Outro aspecto-chave, além da curiosidade, do prazer e da compreensão, é a fantasia. Quando lemos um livro para a criança, ela descobre segredos, imagina coisas diferentes. A história tem um significado especial para

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ela. A criança enriquece a história ouvida e se enri¬quece com todas as fantasias que a história deflagra. Isso é muito importante porque é só com o adulto, só com o relacionamento com uma outra pessoa, que ela pode desenvolver essas fantasias. A atitude do adulto é extremamente importante para que a criança possa se introduzir na história de um livro.
Essa compreensão do papel da história na formação e no desenvolvimento da personalidade infantil levou os educadores de Bolonha a criar cantos de leitura em creches e pré-escolas. Além desses espaços, a prefei¬tura de Bolonha colocou à disposição das crianças nove bibliotecas - nove pontos de leitura.
Abrir uma biblioteca para uma criança significa criar um ambiente onde ela tem a possibilidade de desen¬volver um conhecimento, uma proximidade com o li¬vro, como um objeto que tem suas próprias características. O contato com o livro permite que a criança se relacione de uma maneira física com ele. Nesse caso, o livro não é só um texto, mas um objeto... O livro torna¬-se uma abordagem para adentrar um universo de ma¬ravilhas. O canto da leitura torna-se o lugar onde o conteúdo é fascinante. O fato de que a criança pode fantasiar faz de qualquer lugar um lugar fantástico. Nes¬sas bibliotecas, a criança tem acesso aos livros que são colocados em prateleiras baixas, na altura das crianças, para que esse contato direto aconteça. A partir disso, outras atividades podem ocorrer nos laboratórios de criatividade, em que a criança pode aprofundar o aspecto fantástico da leitura.
O objetivo de tudo isso é fazer com que a criança aprenda a amar os livros, para que desenvolva a curio-

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sidade em descobrir os livros e para que se crie nela, também, uma motivação para querer aprender a ler, para conhecer: para que, no futuro, tenha a capacidade de se introduzir nesse processo de leitura, que tenha o desejo de entrar em contato com esse mundo escrito e que tenha também a criatividade necessária para entrar em contato com as informações. Isto, para nós, é a chave do sucesso na vida.
Este projeto nasceu da constatação - há mais ou me¬nos dez anos - de um empobrecimento da linguagem, uma diminuição na capacidade lingüística de crianças e jovens entre 11 e 18 anos. Percebemos, ainda, uma falta de amor pela leitura e uma dificuldade muito grande na aprendizagem e no ensino em geral com as crian¬ças e jovens desta faixa etária. Então, retomamos nos¬sa experiência de pesquisas e fizemos um levantamen¬to sobre o que vinha acontecendo. Sabemos que a causa disso não é só o tempo de televisão, em que a criança passa só vendo as coisas, mas também a ausência de um adulto que provoque nas crianças a riqueza lingüís¬tica. Acreditamos que adultos competentes e prepara¬dos, como são as professoras de creche e de pré-escola, podem criar essa riqueza, provocar esse convívio com a leitura e criar nas crianças o amor à leitura e a afeição ao livro. Como enfrentar, então, esse problema?
Percebemos que o interessante seria começar a abor¬dar esse problema da leitura com crianças bem peque¬nas. Nesse caso, falo de "leitura" - propositalmente entre aspas - porque crianças pequenas não lêem.
Gostaria de discutir um pouco sobre a minha expe¬riência e sobre o que está acontecendo nesse momento no município de Bolonha em relação à leitura. Tendo dis-

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cutido mais teoricamente a importância do trabalho sis¬temático com livros, quero apresentar o projeto que realizamos com as crianças entre O e 6 anos.
Além do serviço de creches e pré-escolas [nota: 2], em Bo¬lonha temos também o que chamamos rede educativa territorial que a prefeitura oferece para as crianças que não freqüentam as creches e pré-escolas. Assim, nela se encontram tanto as crianças das creches e das pré-¬escolas - com suas professoras - como as crianças que ali vão com suas famílias. São quatro os tipos de pro¬jetos oferecidos [nota: 3]: o espaço de psicomotricidade, o espaço de educação ambiental, o espaço-jogo e o espa¬ço de leitura. Deste último é que tratarei aqui.

Nota 2 – Página 16. Em Bolonha, mais de 30% das crianças de O a 3 anos estão nas 47 creches públicas, municipais e em algumas privadas. Esse índice de atendimento das crianças de O a 3 é maior do que a média nacional. O atendimento às crianças de 3 a 6 anos é de 100% em Bolonha, sendo que a média nacional é de 99,5%.

Nota 3 – Página 16. Várias cidades do norte da Itália têm esse projeto com nomes diferentes. São serviços de apoio a famílias que optaram pela não-freqüência diária das crianças às cre¬ches e aos quais as crianças comparecem com a mãe, com o pai, com os avós ou mesmo com a babá. Esses proje¬tos de apoio às famílias nasceram na Itália para propor¬cionar momentos de encontro em que os pais possam aprender a ser pais. A tradição italiana era a da família ampliada com a presença dos tios, tias, avôs e avós. Na¬quela situação, muitas crianças eram educadas pelos parentes, ficavam em casa com a avó. Hoje, com a família isolada, os pais trabalhando fora e os avós morando longe, esses projetos de apoio à família tornaram-se importan¬tes. Vale lembrar que a Itália tem a taxa de natalidade mais baixa da Europa: uma média de menos de uma criança por casal. Além disso, existem hoje as mães-avós. São mães entre 40 e 45 anos, em situação em que o casal traba¬lha. Com esses projetos oferecidos pelas prefeituras, nos momentos em que as crianças ficam juntas, pais e mães têm sua oportunidade de conversar, receber da secretaria de educação um apoio à paternidade e à maternidade.

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Quando falo de leitura aqui, falo de uma proposta para crianças de 6 meses a 6 anos, ou mesmo de 0 a 6 anos, falo da leitura sem letras, com livros que as crian¬ças podem tocar. É o que chamamos objeto-livro. O contato que um bebê tem com o livro é oral e o livro deve ser preparado considerando isso. Assim, classifi¬camos os livros dentro das creches em livros de pegar, de escutar e de olhar. Para as crianças de 6 meses, são de plástico, de tecido, livros que a criança pode até mastigar. São gostosos, macios, adaptados para crian¬ças bem pequenas que gostam de levar coisas à boca, amassar, molhar. São livros preparados para que todo o corpo da criança possa se aproveitar deles.
Esse canto preparado para a leitura tem que ser muito confortável, porque as crianças não ficam sentadas nessa idade. Elas engatinham, sentam-se no chão, deitam e rolam pelo piso. Por isso, um lugar macio, bem aconchegante, com paredes macias, revestidas de almofa¬das ou colchonetes forma o espaço adequado. As crian¬ças tocam todo o espaço, então há várias texturas esperando o toque da mão nesse canto em que tudo deve ser provocador da leitura. Chamamos esse espa¬ço de canto macio. Aí temos livros enormes sobre os quais as crianças se deitam para melhor apreciá-los, livros em que se pode entrar, que se apreciam apoia-dos no chão e que se abrem como uma sanfona.
O primeiro contato da criança com o livro é sempre um contato físico da criança com o livro-objeto. Por isso,

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quando falo de leitura, é dessa abordagem que falo, da relação que a criança tem com o livro-objeto. Essa é a proposta específica de atividade com livro nessa faixa etária.
As experiências que as crianças mais velhas - 1 a 2 anos - têm com os livros são marcadas por muita cu¬riosidade. Nesse caso, os livros são de papelão, livros que têm perfurações e que as crianças gostam de tocar, colocar os dedos. Conforme elas vão crescendo, vão tendo outros elementos no espaço: às almofadas se juntam pequenas poltronas, cadeirinhas, uma estante baixa com rodinhas. Os livros estão sempre na altura das crianças, à disposição e ao alcance de suas mãos. Outro tipo de canto pode ter prateleiras que as crianças alcançam.
Para as crianças maiores, além das almofadas e das poltronas, pode haver, também, mesas baixas para lei¬tura em grupo ou individual, uma escadinha para apren¬derem a subir para buscar os livros que agora não pre¬cisam estar apenas ao alcance da mão da criança, mas podem estar, também, no alto.
Com aquelas histórias que as crianças pedem para as professoras contarem repetidas vezes algumas pro¬fessoras montam painéis na parede. Assim, algumas histórias vão ficando à disposição das crianças estam-padas nas paredes o tempo todo.
As professoras de cada creche organizam o espaço sempre dentro dessa perspectiva de provocar as crian¬ças para a leitura e, ao mesmo tempo, sempre obser¬vando o que elas gostam e o que querem. Por isso as coisas são feitas dessa forma. Não é um currículo es¬colar, não é um modelo para ser copiado, mas é a for¬ma como estamos fazendo a partir do que vamos tam-¬

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bém aprendendo com as crianças. Um dos objetivos é que as crianças queiram aprender a ler, que sejam le¬vadas a ter vontade de ler. Tais experiências realizadas pelas crianças com o livro - mesmo que elas não leiam as letras, mesmo que o livro não contenha letras -, esse fascínio e essa mágica constituem um convite para a criança pegar o livro para ler. Em poucas palavras, o objetivo é ensinar e aprender a gostar dos livros.
Cada professora de educação infantil tem uma quan¬tidade de horas semanais que são utilizadas para reu¬nião de pais, com formação continuada, com atualização, com formação. Assim, faz parte das horas de trabalho das professoras um tempo para criarem esses espaços. Ao observar que as crianças gostam de se sentir protegidas, de estar dentro dos lugares, as professoras criaram, num canto da sala, um espaço que lembra uma caverna, uma toca onde as crianças podem entrar para ler os livros. A caverna não foi uma invenção das pro¬fessoras, mas resultado da observação do movimento das crianças que, após a escolha de um livro nas pra¬teleiras, saíam em busca de lugares onde pudessem estar isoladas para ver o livro. A constatação de que as crian¬ças gostam de se sentir assim moveu a atitude das professoras. Por isso, nem todas as creches têm uma toca para leitura das crianças pequenas. Algumas têm um castelinho, outras, uma casinha de madeira ou uma cabana de pano. O importante é que, nesse canto da leitura, a criança entra em contato com os livros em lugares onde ela se sente à vontade e pode se instalar com conforto. Esse primeiro contato da criança é mui¬to importante. Por isso, os livros são escolhidos a dedo pelas orientadoras, que vão depois retomar esses mês-¬

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mos temas mais tarde na idade pré-escolar. São pro¬postas que se iniciam nessa idade e depois são reto¬madas.
Esses espaços de leitura para crianças na faixa etária de 0 a 6 anos em creches e pré-escolas, em Bolonha, têm sido muito utilizados e hoje temos nove bibliote¬cas para crianças de 0 a 10 anos de idade. São espaços realmente muito interessantes, bonitos e mágicos que podem assumir, como vimos, formas diferentes como a de um castelo ou a de uma toca.
Esse programa municipal de bibliotecas para crian¬ças, muitas vezes, vai para creches que não têm biblio¬teca. Assim, as creches que não têm esse programa podem agendar idas às bibliotecas ou solicitar que a biblioteca vá até a unidade. Uma mala com rodinha, que, ao se abrir, se torna uma estante, se presta a esse ser¬viço de levar as histórias para lá e para cá. Há até um acordo desse programa com ala pediátrica de um hospital próximo, e uma biblioteca para crianças de 0 a 14 anos vai até a pediatria do hospital.
Assim, além da leitura na creche, há um espaço de leitura para crianças nas nove bibliotecas criadas pelo município para atender também crianças pequenas.
Seja no espaço para leitura, seja nas creches e nas pré-escolas, a finalidade do trabalho é sempre motivar as crianças à leitura buscando o prazer da escuta e da narração, a curiosidade do saber, a autonomia do pensamento. O livro é proposto, então, como chave de acesso ao mundo da imaginação e pode tornar-se um objeto para ser explorado, para inventar-se e para construir. As bibliotecas fazem-se também laboratórios de construção e de exploração de livros, onde além de ouvir

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histórias e de emprestar livros, as crianças - das cre¬ches, das pré-escolas e do ensino fundamental e tam¬bém as que vêm com suas famílias - participam de lei¬turas animadas - com a construção de cenários e de fantoches - e de laboratórios em que as histórias podem ser encenadas, desenhadas e livros podem ser construídos. Essa construção pode ser o momento fi¬nal da leitura: a história é lida umas tantas vezes de acordo com a solicitação das crianças; elas conhecem a história, e daí fazem um novo livro a, partir do que ouviram, agora com páginas grandes e duras que poderão utilizar para contar a história e para explorá-la de novas formas. É uma coisa simples, mas revela a pai¬xão, a atenção e o cuidado que a professora tem quando se ocupa da questão da leitura.
Seja com o livro de plástico, de pano ou de papelão, o que muda em cada idade é a forma de utilização e interação da criança com o livro, que vai da explora¬ção física aos desdobramentos da história com a ani¬mação ou as construções em laboratório. De algum modo, o corpo entra no livro literalmente, ou, então, estão todos olhando um mesmo livro de páginas gran¬des, as crianças entrando na história. Em qualquer idade, as professoras dedicam muito tempo à escolha dos li¬vros, à organização do espaço e das estantes, pois sabem que a história envolve e aproxima as crianças, inclusive fisicamente. A história ajuda a se reconhecer, a imaginar e a interagir.
Com as crianças pequenininhas, a apropriação da cultura presente nos livros e sua confrontação com a experiência vivida por elas demonstram que a criança pequenininha pensa, ao contrário do que defendem al¬-

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gumas teorias para as quais a criança só começa a pensar aos 9 anos de idade.
Por tudo isso, realizamos nosso trabalho de leitura com e sem letras, porque acreditamos que na história nos envolvemos e nos aproximamos; ela nos ajuda a nos reconhecer, imaginar, interagir com os outros, ob-servar, confrontar o ouvido e o visto com o vivido, compreender a realidade e representá-la, associar a rea¬lidade e a representação.

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