O processo de aquisição da escrita na educação infantil: contribuições de Vygotsky
Artigo publicado em GOULART, A. L. e MELLO, S. A.(orgs).Linguagens infantis: outras formas de leitura. Campinas: Autores Associados, 2005.
Com base em estudos desenvolvidos por Vygotsky e seus colaboradores –que pretendo explicitar nesta exposição-, parto da idéia de que muito do que temos feito com a educação das nossas crianças pequenas na escola da infância e mesmo no ensino fundamental, especialmente no que concerne à aquisição da escrita, carece de uma base científica e que, frente a novos conhecimentos que temos hoje, podemos perceber alguns equívocos nessas práticas e buscar, a partir desses novos conhecimentos, maneiras de melhorar a forma como trabalhamos para garantir aquilo que todos queremos e que é a maior conquista que a educação pode permitir: a formação e o desenvolvimento máximo da inteligência e da personalidade das crianças.
Ao final desta exposição, espero ter convencido o leitor de que até agora temos contaminado, por assim dizer, a educação infantil com as tarefas do ensino fundamental e de que, de agora em diante, frente aos novos conhecimentos sobre o processo de desenvolvimento das crianças, trata-se de fazer o inverso: deixar contaminar o ensino fundamental com atividades que julgamos típicas da educação infantil – ainda que, muitas vezes, nem na educação infantil reservemos tempo para elas. Falo das atividades de expressão como o desenho, a pintura, a brincadeira de faz-de-conta, a modelagem, a construção, a dança, a poesia e a própria fala. Estas atividades são, em geral, vistas na escola como improdutivas, mas, na verdade, são essenciais para a formação da identidade, da inteligência e da personalidade da criança, além de constituírem as bases para a aquisição da escrita como um instrumento cultural complexo.
Entre as concepções de educação infantil que dirigem as práticas de educação das crianças brasileiras entre 3 e 6 anos, percebo uma concepção muito forte -muitas vezes sustentada pela pressão dos pais, mas sobretudo pela própria formação dos professores que trabalham com a educação infantil- que defende a antecipação da escolarização e com tal escolarização precoce ocupa o tempo da criança na escola e toma o lugar da brincadeira, do faz-de-conta, da conversa em pequenos grupos quando as crianças comentam experiências e conferem os significados que atribuem às situações vividas. Para esses pais e professores, quanto mais cedo a criança é introduzida de modo sistemático nas práticas da escrita, melhor a qualidade da escola da infância. Essa prática de antecipação de escolarização se sustenta na idéia de que quanto mais cedo a criança se transformar em escolar e quanto mais cedo se apropriar da escrita, maiores suas possibilidades de sucesso na escola e na vida, e maior o progresso tecnológico do país.
No entanto, aprendemos com o dito popular que "de boas intenções o inferno está cheio" e, por isso, desconfiando das concepções que chamam de desenvolvimento as mudanças vividas pelas crianças pequenas e entendem esse desenvolvimento como natural -quando, na verdade, ele é resultado do processo de educação-, pretendo buscar as contribuições de Vygotsky sobre os processos vividos pelas crianças até os seis anos de idade para compreender melhor esses processos e pensar as formas mais adequadas da nossa intervenção sobre esse processo da criança crescer e formar sua inteligência e da personalidade. Ao mesmo tempo, entendo que é necessário buscar, nos estudos desse Autor, contribuições acerca da aquisição da escrita, elementos que ajudem a compreender esse processo e as condições de sua apropriação pelas crianças até os seis anos de idade. A partir daí, penso que poderemos propor procedimentos adequados para isto que afinal todos nós -pais, professores, estudiosos, militantes da causa da infância- queremos, ou seja, o desenvolvimento harmonioso da personalidade infantil, o que nas palavras de Gramsci significava formar cada uma das nossas crianças para ser um dirigente.
Vygotsky já fazia em seu tempo - década de 20 do século XX - uma crítica que permanece atual aos processos de apresentação escolar da escrita para as crianças, inclusive aquelas em idade escolar. Ele dizia: às crianças ensinamos a traçar as letras, mas não ensinamos a linguagem escrita. Queria dizer, com isso, que na forma como em geral apresentamos a escrita para a criança, o ensino do mecanismo prevalece sobre a utilização racional, funcional e social da escrita. Criticava a fato de que em seu tempo, e também ainda hoje, de maneira geral, o ensino da escrita se baseia em um conjunto de procedimentos artificiais que exigem "enorme atenção e esforços por parte do professor e do aluno e, devido a tal esforço, o processo se transforma em algo independente, em algo que se basta a si mesmo enquanto a linguagem viva passa a um plano posterior". (...) "Nosso ensino ainda não se baseia no desenvolvimento natural das necessidades da criança, nem em sua própria iniciativa: lhe chega de fora, das mãos do professor e lembra a aquisição de um hábito técnico" (VYGOTSKY, 1995, p. 183).
E no entanto, a aquisição da escrita tem um papel enorme no desenvolvimento cultural e psíquico da pessoa, uma vez que dominar a escrita significa dominar um sistema simbólico extremamente complexo que cria sinapses essenciais para outras formas elaboradas de pensamento.
A escrita é um simbolismo de segundo grau, uma vez que "se forma por um sistema de signos que identificam convencionalmente os sons e palavras da linguagem oral que são, por sua vez, signos de objetos e relações reais" (idem, p. 184). Em outras palavras, a escrita representa a fala que, por sua vez, representa a realidade. Por isso, a escrita é uma representação de segunda ordem. Para que sua aquisição se dê de forma efetiva, no entanto, é preciso que o nexo intermediário –representado pela linguagem oral- desapareça gradualmente e a escrita se transforme em um sistema de signos que simbolizem diretamente os objetos e as situações designadas. Só assim o leitor será capaz de ler idéias e não palavras compostas de sílabas num texto. Da mesma forma, ao escrever registrará idéias e não apenas grafará palavras.
Deste ponto de vista, creio, já se pode perceber que o domínio deste sistema complexo de signos não pode ser dar por via exclusivamente mecânica, por uma aprendizagem artificial. Para Vygotsky, a aquisição da escrita resulta de um longo processo de desenvolvimento das funções superiores do comportamento infantil que o Autor chama de pré-história da linguagem escrita. Esta história –que é, na verdade, a história das formas de expressão da criança- é constituída por ligações em geral não perceptíveis à simples observação e começa com a escrita no ar, com o gesto da criança ao qual nós, adultos, atribuímos um significado.
Entre o gesto e o signo escrito, dois elementos se interpõem: o desenho e o faz-de-conta.
Se observarmos, perceberemos que o desenho, como uma continuidade do gesto, inicialmente é uma representação gráfica do gesto. Aos poucos, ele se torna uma representação simbólica e gráfica do objeto.
Da mesma forma, no faz-de-conta, a ausência de alguns objetos necessários à brincadeira é compensada por objetos que passam a representar os ausentes e, aos poucos, se convertem em signos que representam os objetos ausentes. Nesse caso, o mais importante não é a semelhança entre o objeto verdadeiro e o representado, mas a possibilidade de representar, com a ajuda do novo objeto, o gesto representativo do objeto ausente. De fato, é o gesto que atribui a função de signo ao objeto e, ao longo do exercício do faz-de-conta, graças ao uso prolongado, o novo significado se transfere ao objeto e este passa a representar o novo objeto para a criança, independentemente do gesto.
Assim, a criança, ao longo da idade pré-escolar, com a ajuda do desenho e do faz-de-conta, vai tornando mais elaborada a forma como utiliza as diversas formas de representação. Desta maneira, entende-se que a representação simbólica no faz-de-conta e no desenho é uma etapa anterior e uma forma de linguagem que leva à linguagem escrita: desenho e faz-de-conta compõem uma linha única de desenvolvimento que leva do gesto -a forma mais inicial da comunicação- às formas superiores da linguagem escrita. Essa forma superior da linguagem escrita deve ser entendida como o momento em que o elemento intermediário entre a realidade e a escrita - a linguagem oral - desaparece e a escrita se torna diretamente simbólica, ou seja, percebida como uma forma de representação direta da realidade.
Por isso, o tempo dedicado ao desenho e ao faz-de-conta, na escola da infância precisa ser revisto no sentido de receber uma atenção especial do professor. Ao tratar dessas atividades não tratamos de atividades de segunda categoria, mas de atividades essenciais na formação das bases necessárias ao desenvolvimento das formas superiores de comunicação humana. Ou seja, se quisermos que as crianças se apropriem efetivamente da escrita -não de forma mecânica, mas como uma linguagem de expressão e de conhecimento do mundo-, precisamos garantir que elas se utilizem profundamente do faz-de-conta e do desenho livre, vividos ambos como forma de expressão e de atribuição pessoal de significado àquilo que a criança vai conhecendo no mundo da cultura e da natureza.
Para além disso, duas teses da teoria histórico-cultural contribuem para pensarmos sobre os procedimentos que levam à aquisição da escrita: a tese sobre como se dá o processo de conhecimento humano e a tese sobre os momentos mais adequados para a influência do professor no processo de desenvolvimento infantil.
A primeira tese - acerca do processo de conhecimento humano - aponta que as novas gerações se apropriam dos instrumentos culturais criados pelos homens ao longo da história - como, por exemplo, a linguagem escrita - à medida que realizam com esses instrumentos as atividades para as quais esses foram criados. No caso da escrita, é necessário utilizá-la – considerando o fim social para o qual foi criada - para escrever para registrar vivências, expressar sentimentos e emoções, comunicar-se.
Com isso, já se percebe que as atividades que em geral são utilizadas para ensinar a escrever pecam por sua finalidade e pelo sentido que imprimem à atividade. Em geral, ensinam-se letras e sílabas para as crianças na educação infantil e no processo inicial de alfabetização no ensino fundamental. Parece que, frente à complexidade da escrita, buscou-se uma forma de tornar o processo mais simples.
O problema é que, ao tornar o processo mais simples buscando ensinar primeiro as letras para então chegar aos processos de comunicação e expressão, perdeu-se de vista a função social da escrita, ou seja, o fim mesmo para o qual a escrita foi criada. Os exercícios de escrita, que, de um modo geral, preenchem boa parte do tempo das crianças nos últimos anos da educação infantil e no início do ensino fundamental são, em geral, tarefas de treino de escrita de letras, sílabas e palavras que não constituem atividade expressão. De um modo geral, insiste-se no reconhecimento das letras – com as quais a criança não lê nada. Esse trabalho com letras e sílabas dificulta a percepção pela criança de que a escrita é um instrumento cultural. Escrever, em lugar de expressar uma informação, uma emoção ou um desejo de comunicação, toma para a criança o sentido de atividade que se faz na escola para atender a exigência do professor. Da mesma forma se dá com a leitura. E esse sentido marca a relação que a criança vai estabelecer com a escrita no futuro: ao enfatizar o aspecto técnico começando pelo reconhecimento das letras e gastando um período longo numa atividade que não expressa informação, idéia, ou desejo pessoal de comunicação ou expressão, a escola acaba por ensinar à criança que escrever é desenhar as letras, quando, de fato, escrever é registrar e expressar informações, idéias e sentimentos.
O conjunto de tarefas de treino de escrita, típico dos processos iniciais de apresentação da escrita para a criança na escola infantil e ensino fundamental – felizmente há exceções – faz com que a criança passe longos períodos sem se expressar na escola: para as formas pelas quais ela poderia se expressar - a fala, o desenho, a pintura, a dança, o faz de conta... que formam, aliás, as bases necessárias para a aquisição da escrita -, não há tempo, uma vez que ela está ocupada com o treino de escrita e, pela escrita ela não pode se expressar ainda, porque está ainda aprendendo as letras. Sem exercitar a expressão, o escrever fica cada vez mais mecânico, pois sem ter o que dizer, a criança não tem por que escrever.
Além disso, essa forma de trabalho que enfatiza letras e sílabas dificulta a concentração da criança, uma vez que não faz sentido para ela. Com isso, esse exercício de treino acaba por tomar o maior tempo da atividade da criança na escola infantil e todo o tempo no ensino fundamental.
Como se tudo isso não bastasse, como a criança, em geral, não tem ainda as bases para essa aprendizagem complexa que é a escrita – nem na escola infantil quando o trabalho educativo deve formar essas bases, nem na escola fundamental, já que a antecipação de escolaridade para a escola infantil impede que estas se formem -, as atividades de treino propostas na escola exigem um esforço enorme da criança e têm poucas chances de responder às expectativas da professora. A criança erra porque não tem as bases necessárias para dar conta da tarefa que lhe é proposta. Com isso, vai acumulando uma história de fracasso e de cansaço em relação à escola que condiciona sua expectativa e sua relação futura com a escola.
Percebendo a situação no seu conjunto, podemos dizer que o treino para a escrita toma o lugar de todas as atividades que privilegiam a expressão, inclusive a atividade de escrita que é muito diferente do mero treino.
Essa mesma tese de Vygotsky, mencionada acima acerca do processo como o sujeito se apropria da cultura, aponta o caráter ativo da criança que aprende.
Hoje sabemos que para aprender, a criança precisa ser ativa no processo, precisa ser sujeito e não um elemento passivo do processo de ensino. A partir do que conhecimento sobre as crianças pequenas que viemos acumulando e sobre o processo de humanização de um modo geral, passamos a entender o processo de aprendizagem de forma mais complexa: aprender envolve atribuir um sentido ao que se aprende. Só a criança que entende o objetivo do que lhe é proposto e que atua motivada por esse objetivo é capaz de atribuir um sentido que a envolva na atividade. Os fazeres propostos para as crianças na escola têm mais possibilidades de se estabelecer como atividade quanto maior for a participação da criança na escola dando a conhecer suas necessidades de conhecimento – que poderão ser aproveitadas ou transformadas pela escola conforme seu grau de humanização ou alienação -, trazendo elementos para dar corpo à atividade , realizando ela própria as tarefas propostas e buscando a ajuda do educador num processo que caracteriza o ensino colaborativo. Por isso, não se trata de garantir que a criança receba uma quantidade de informação sem que ela tenha tempo para apropriar-se dela e objetivar-se a partir de sua apropriação. Ao contrário, a informação vai ser apropriada apenas se a criança puder interpretá-la e expressá-la sob a forma de uma linguagem - que pode ser a fala, um texto escrito, um desenho, uma maquete, uma escultura, um jogo de faz-de-conta, uma dança - que torne objetiva esta sua compreensão . É um processo de diálogo que se estabelece entre a criança e a cultura, processo esse que, na escola, é mediado pela professora e pelas outras crianças. Isso implica, essencialmente, dar voz à criança e permitir sua participação na vida da escola, num projeto que é feito com elas e não para elas ou por elas. Por outro lado, percebemos também a importância da escola na criação de novas necessidades humanizadoras nas crianças – tais como a necessidade de conhecer mais, de ler, de expressar-se por meio de diferentes linguagens.
Isto implica que a criança não se apropria da escrita apenas por que o educador deseje imensamente ensiná-la, mas apenas quando a escrita faz sentido para ela, quando o resultado da escrita responde a uma necessidade criada na criança. Como afirma Vygotsky, da mesma forma que a linguagem oral é apropriada pela criança naturalmente, a partir da necessidade criada nela no processo de sua vivência social numa sociedade que fala, a escrita precisa se fazer uma necessidade natural da criança numa sociedade que lê e escreve.
Nesse sentido, amplia-se o caráter do trabalho do professor da educação infantil e do ensino fundamental. Em lugar de apresentar às crianças exercícios de treino de escrita, a preocupação do professor deve orientar-se para a criação de novas necessidades nas crianças - entre elas a necessidade de escrita – a partir do que as aprendizagens possam se efetivar num nível mais elevada.
Ao considerar a necessária intervenção dos professores sobre o processo de desenvolvimento das crianças, Vygotsky considera que esta influência será mais adequada se considerar o momento do desenvolvimento psíquico e cultural da criança. Como afirma esse Autor, a influência da educação sobre determinada função psíquica será mais efetiva no momento em que esta função estiver em desenvolvimento. Este é o momento adequado para influenciar e potencializar seu desenvolvimento: não quando uma determinada função já está plenamente desenvolvida - o que implicaria retomar um desenvolvimento já cristalizado, desfazer processos e recuperar desvios - e tampouco quando a função não tem ainda as bases necessárias para seu desenvolvimento. Em outras palavras, é preciso considerar as regularidades do desenvolvimento infantil percebendo os períodos sensitivos nesse desenvolvimento. Deste ponto de vista, a criança é seletiva em relação àquilo que aprende. Por isso, a decisão pela proposição de atividades que levem à aquisição de um novo instrumento cultural ou uma nova habilidade ou capacidade nas crianças precisa considerar o nível de desenvolvimento daquilo que constitui as bases necessárias para tal aquisição. Mais que isso, o professor da infância precisa considerar a forma da atividade através da qual a criança, nas diferentes etapas de seu desenvolvimento psíquico, se apropria do mundo.
Conforme estudos da teoria histórico-cultural, ao longo do processo de desenvolvimento psíquico do ser humano, existe uma atividade que se considera principal em cada etapa desse desenvolvimento, uma vez que é aquela que mais motiva o desenvolvimento de outras atividades que abrem o conhecimento do mundo para o sujeito, que mais exercita a organização e reorganização dos processos psíquicos e a que mais favorece mudanças na personalidade. Esses mesmos estudos apontam que na idade pré-escolar - entre 3 e 6 anos - o brincar livre constituído basicamente do faz-de-conta é essa atividade por permitir a experimentação de inúmeras outras atividades que descortinam o mundo dos objetos da natureza e da cultura para a criança, por favorecer o exercício do pensamento infantil através de suposições e conjecturas - que, se confirmadas, permitem a criação de teorias temporárias ou não e, se rechaçadas, apontam para outras hipóteses - e, finalmente, por favorecer as principais mudanças psicológicas na personalidade infantil uma vez que, ao colocar-se no papel de outro, a criança assume um comportamento compatível com o personagem representado, em geral de mais idade que ela e com atitudes mais complexas e intencionalmente controladas. Ao controlar o “querer fazer” frente ao “poder fazer” delimitado pelo papel assumido, a criança exercita o aprendizado do controle da conduta e o domínio da vontade.
Tais atitudes e capacidades formam as bases necessárias para a apropriação da escrita. Por isso, quando defendo a necessidade da criança – seja na educação infantil, seja no ensino fundamental - expressar-se por meio das muitas linguagens possíveis na escola, não quero com isso excluir a linguagem escrita. Ao contrário, quero incluí-la de modo a se tornar mais uma linguagem de expressão das crianças. O fato é que essas linguagens não podem estar separadas, nem entre si e nem separadas de experiências significativas que tragam conteúdo à expressão das crianças nas diferentes linguagens. Se as crianças puderem conviver com a escrita e com a leitura - realizadas inicialmente pela professora - enquanto vivem muitas experiências significativas - por exemplo, conhecendo o espaço por meio de passeios pelos arredores da escola, pelo bairro, pela cidade; conhecendo pessoas por meio de visitas, de aproximação com as pessoas que trabalham na escola, de visita dos pais, mães e avós da turma à escola, de leitura de histórias, de poesias, de audição de música, de filmes; se puderem conhecer mais sobre os assuntos que chamam sua atenção por meio de observação e experimentação na natureza, leitura, vídeo, conversa com especialistas... e se puderem comentar essas experiências e registrá-las por meio de desenho, pintura, colagem, modelagem, brincadeiras e teatro de fantoches - a leitura e a escrita constituirão o próximo passo que a criança vai querer dar em seu processo de apropriar-se do mundo.
Com isso, quero dizer que se queremos que nossas crianças leiam e escrevam bem e se tornem verdadeiras leitoras e produtoras de texto – o que, de fato, é uma meta importantíssima do nosso trabalho como professores -, é necessário que trabalhemos profundamente o desejo e o exercício da expressão por meio de diferentes linguagens: a expressão oral por meio de relatos, poemas e música, o desenho, a pintura, a colagem, o faz-de-conta, o teatro de fantoches, a construção com retalhos de madeira, com caixas de papelão, a modelagem com papel, massa de modelar, argila. É necessário que a criança experimente os materiais disponíveis que a escola e o educador têm como responsabilidade ampliar e diversificar sempre. Essa necessidade de expressão – é sempre importante lembrar – surge a partir do que as crianças vêem, ouvem, vivem, descobrem e aprendem. Quando essas experiências são registradas por escrito por meio de textos que as crianças produzem e a professora registra com as palavras das crianças, garantimos a introdução adequada da criança ao mundo da linguagem escrita.
Entretanto, começamos não por propor atividades de escrita para a criança, mas por estimular e exercitar seu desejo de expressão. Fazemos isso quando a deixamos contar suas histórias de vida e de imaginação para o grupo - e também contando histórias para ela, histórias que ela vai recontar depois. Também estimulamos e exercitamos seu desejo de expressão quando estimulamos sua observação, quando solicitamos rotineiramente sua participação na solução de problemas e na discussão de temas apresentados na sala, quando avaliamos o dia vivido na escola junto com todo o grupo, quando chamamos sua participação para o estabelecimento das regras e dos combinados que definem a vida na escola e na turma, para a organização da rotina diária e do espaço. Também estimulamos sua expressão quando deixamos no horário diário um tempo para uma atividade livre que a criança vai escolher entre as possibilidades existentes na sala ou na escola e depois, numa atividade coletiva, relata para a turma sua experiência.
Em breves palavras: é uma questão de permitir à criança exercitar seu papel de protagonista neste seu processo de aprender e se tornar cidadã. Isso implica dar-lhe voz, tratá-la como alguém que, se não sabe, é capaz de aprender. Desse ponto de vista, enfrentamos vários desafios ao mesmo tempo: permitimos, em primeiro lugar, que ela forme uma imagem positiva de si mesma, condição emocional fundamental para aprender qualquer coisa. Ao trazer sua história para a escola, ao formular e expressar opiniões, ao propor soluções para os problemas vividos no grupo, ao expressar suas idéias, angústias e sentimentos, a criança deixa de ser anônima e passa a ser alguém que tem uma identidade no grupo. Em segundo lugar, possibilitamos que se sinta parte da escola. Essa sensação de pertencimento é correlato essencial da disciplina – cuja causa primeira é o sentimento de exclusão e não a pobreza ou a desagregação da família tradicional, como muitas vezes pensamos. Em terceiro lugar, esse envolvimento da criança na vida da escola promove sua expressão oral que é condição essencial para o desenvolvimento da inteligência. As palavras são a matéria com que trabalha o pensamento; se faltam as palavras, falta o pensamento. A palavra estabiliza um sentido, organiza o mundo para aquele que passa a ver e conhecer a cultura humana e a natureza; com ela, amplia-se a memória, o conhecimento do mundo, o controle da própria conduta que se exerce pela linguagem interna.
Pesquisas têm demonstrado que sob condições adequadas de vida e de educação, as crianças desenvolvem intensamente - e desde bem pequenas - diferentes capacidades práticas, intelectuais e artísticas. No entanto, isso não deve levar a pensar que se pode abreviar a infância para apressar o desenvolvimento da inteligência e da personalidade. Em cada idade da vida há uma forma explícita da relação do ser humano com o mundo e é esta a forma por meio da qual o sujeito mais aprende. Já apontamos que, na idade pré-escolar, essa atividade é o brincar e todas as formas de expressão que a criança aprende. Na idade escolar, essa atividade será o estudo, cuja compreensão e interpretação precisa ser sempre objetivada, expressa pela criança. Não há qualquer razão científica que justifique que essa expressão deva ser restrita a uma única linguagem. Ao contrário, é do exercício de múltiplas linguagens que a expressão se fortalece.
Ao mesmo tempo, é importante lembrar que a passagem do brincar ao estudo como atividade por meio da qual a criança mais aprende não acontece como num passe de mágica, de um momento para o outro. Ao contrário, é um processo por meio do qual, aos poucos, a criança vai deixando de se relacionar com o mundo por meio da brincadeira e começa a fazer do estudo a forma explícita de sua relação com o mundo. Enquanto esse processo acontece, respeitamos um tempo livre na escola fundamental para que a criança possa viver ainda um tempo de brincar, de fazer-de-conta, de ser criança.
Por tudo isso, defendo a idéia de que devemos com urgência “descontaminar” a escola da infância dos procedimentos típicos do ensino fundamental e “contaminar” o ensino fundamental com procedimentos – como as atividades de expressão - que devemos ter como típicos da escola infantil e que, para o bom desenvolvimento da inteligência e da personalidade das crianças, devem estar presentes também nas séries iniciais do ensino fundamental.
Retomando Vygostky e suas contribuições para o processo de apresentação da escrita à criança de modo que a escrita se torne um instrumento de expressão e conhecimento do mundo para uma criança leitora e produtora de textos, vale destacar as diretrizes por ele apontadas:
1.que o ensino da escrita se apresente de modo que a criança sinta necessidade dela,
2. que a escrita seja apresentada não como um ato motor mas como uma atividade cultural complexa,
3. que a necessidade de aprender a escrever seja natural, da mesma forma como a necessidade de falar,
4. que ensinemos à criança a linguagem escrita e não as letras.
Para finalizar, eu gostaria de trazer essa reflexão para o contexto da discussão que envolve hoje os conceitos de alfabetização e de letramento. Se entendermos o conceito de letramento como referindo-se ao processo de inserção do sujeito no mundo da cultura escrita de forma a perceber a escrita como um instrumento cultural complexo, ou seja, letramento não como sinônimo de aprendizagem de letras, sílabas ou palavras, mas como compreensão da função social da escrita que possibilite sua utilização não como uma técnica, mas como um instrumento da cultura que permite a comunicação e o registro da expressão e do conhecimento, eu diria que Vygotsky defenderia o letramento para as crianças até 6 anos, e para as crianças entre 6 e 10 anos, a alfabetização com letramento.
Referência Bibliográfica
VYGOSKY, L. S. El desarrollo del lenguaje escrito. In: Obras Escogidas, Madrid: Visor, v. 3, 1995.
Este blog foi criado como forma de registro da aprendizagem e exploração dos estudos gerados na Formação Continuada organizada pela NAED SUDOESTE da Prefeitura de Campinas com o tema destacado sobre as linguagens infantis.
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